segunda-feira, 30 de junho de 2014

Uma Carta para Si Mesmo

"Olá, você. Talvez eu nem precise mais escrever o restante da carta porque você já sabe do que se trata, ou provavelmente tenha esquecido. Eu sou alguém que talvez você já não seja mais, pois presumo que tenha adquirido grandes experiências na sua vida e não pense mais da maneira como eu penso hoje. A vida é como um rio que nasce na mais pura fonte e segue aos poucos seu caminho, acumulando impurezas durante o seu curso e contemplando as mais diversas paisagens e suas histórias sempre únicas. Desde o início o rio sabe exatamente aonde irá terminar, e no caminho ele se torna parte da natureza -- apesar de estar apenas de passagem -- sempre sendo observado por todo tipo de árvores que já viram todos os tipos de águas correrem por ali. O fato é que cedo ou tarde o rio irá terminar, e querendo ou não ele não será mais apenas um rio, e sim um mar em sua eternidade.

Desde pequeno, você tinha desejos diferentes e agia com bastante singularidade. Lembra que quando criança você criou vários jogos de videogame com histórias originais, que só você sabia jogar e só você entendia as histórias? Os  seus brinquedos atuavam tão bem que não pareciam ser compreendidos quando outras crianças brincavam com eles. Você aos doze anos havia criado um planeta para eles, e cada boneco tinha a sua história e personalidade, como se realmente existissem. Lembro que você havia criado até uma liga de futebol neste planeta, com centenas de jogadores diferentes, e torneios que eram disputados quase sempre. E como sempre acontece, você começou a achar estranho continuar agindo dessa forma, e as histórias que eram sempre tão divertidas foram simplesmente perdendo a graça. Foi quando você começou a escutar hip-hop e decidiu se tornar um rapper, isso aos treze anos. Você cantava seus raps na frente do espelho, como se estivesse fazendo um show para uma multidão, e tentava se vestir exatamente como os seus ídolos da época. Chegou inclusive a cantar na sala de aula para seus amigos, e até formou um grupo, com suas músicas próprias que falavam de coisas que ninguém entendia, e algumas eram até em inglês! Um único detalhe: você não sabia inglês. Foram tempos tão divertidos que parecem ter passado depressa demais. Mas, como sempre acontece, você se deu conta de que não se pode falar uma língua que ninguém conhece, e isso também foi perdendo a graça.

Na escola, você era sempre divertido e falava com todos, mas as notas não eram as melhores. Na verdade, você não ligava muito pra escola e a única coisa que sabia era que se tirasse notas vermelhas iria ter que se entender com a sua mãe. Brincar era mais divertido. Lembra daquela surra que você levou no dia em que cabulou a aula para jogar videogame justamente no dia que sua mãe foi te procurar na escola? Você sempre se apaixonava pelas garotas mais velhas com quem não havia a menor chance, e morria de timidez quando alguém dizia que estava gostando de você? Queria sempre parecer um cara legal e durão, mas levou uma surra histórica de um garoto na frente de todo mundo, e foi hilário. Na verdade, brigar e namorar nunca foi o seu forte, pode ter certeza. Você se tremia todo na primeira iminência de uma briga ou de um namoro, seja lá com quem tenha sido. Afinal, brincar era mais divertido.

Você cresceu um pouco e aprendeu algumas lições importantes, como a de que não se pode ser legal para todo mundo. Não dá pra ser o orgulho da família e a decepção dela no mesmo dia. Não dá pra fingir que não está bêbado quando seu corpo transpira álcool. Você foi músico na igreja, e até tocava lá. Mas durante a semana você achava mais legal ser a pessoa que a igreja não queria que fosse. Era engraçado, mas mesmo assim você tinha quase tudo para ser um bom líder, ou pastor, sei lá. As músicas que escrevia eram legais, mas era chato suportar as orações e os cultos que nunca terminavam. Brincar sempre era mais divertido. Ainda bem que a vida te deu um empurrãozinho pra escapar dessa dualidade, e começar essa busca pela sua personalidade e pelo seu lugar nesse mundo. (Quer dizer, o que realmente estamos buscando?)

Depois disso, você começou sua viagem em meio as bebedeiras e os perigos de uma vida descontrolada. Aos dezesseis anos você bebia destilados, fumava cigarros e já tinha experimentado maconha. Já havia se acostumado com as retalhações dos familiares distantes e dos antigos amigos da igreja. Decidiu ser assim e pronto. O problema é que ainda faltava concluir o ensino médio, e pra isso era necessário tirar notas boas, e pra tirar notas boas era necessário ir às aulas. A vida era uma constante bagunça, era uma brincadeira que se repetia todos os dias. Foi quando Deus viu que você precisava de mais um empurrãozinho e te deu uma namorada e um emprego. Agora sim tomaria jeito. Mas você preferia tomar cerveja.

Você conheceu o seu sonho e a sua namorada no mesmo dia. Disse a ela que queria conhecer o mundo, com um leve propósito de impressionar a garota. Assim, você conseguiu a garota e conheceu o Maior Desafio de Todos: tornar esse sonho real. Nos seus momentos mais covardes você se arrependeu de ter descoberto o que você realmente queria fazer da sua vida, pois é um desafio e tanto.

Não me lembro de ter visto alguém tão sortudo como você foi. Conseguiu uma namorada fiel e simpática, um bom emprego, uma bolsa para um bom curso de engenharia. Mas não era tão legal assim sair de casa no amanhecer e voltar no começo da madrugada, porque não se via ninguém na rua! Foi o ápice da autodestruição. Tentava compensar a falta de diversão do cotidiano nos finais de semana regados a bebedeiras sem fim, e atitudes desordenadas. Você traía sua namorada e passou a beber mais, fumar mais, e conheceu a cocaína. Foram longos meses. Você só decidiu parar porque percebeu que estava se tornando um zumbi e seu nariz sangrava quase sempre que tocava nele. Foi uma ótima decisão.

O rio da sua vida continuou correndo e você agarrou a oportunidade de um emprego melhor, em uma compania maior. O problema é que as grandes companias não deveriam ter funcionários humanos. Talvez até os robôs se rebelariam contra elas. Na verdade, as grandes companias não deveriam ter funcionários. Você viu pessoas novas, conheceu mais oportunidades para trair sua namorada, e viu cada vez menos tempo para ela. Então longos anos se passaram até você perceber o sentimento de amor novamente correndo em suas veias. Em troca da sua namorada, você descobriu o verdadeiro significado da amizade em quatro pessoas totalmente diferentes que se conectavam entre si sem a menor dificuldade. Só que você tinha um grande sonho pra realizar, Sr. André.

Hoje é o melhor dia de todos para ter dedicado estas palavras a você, companheiro. São meia noite e amanhã você tem contas a pagar e um dia de trabalho para cumprir. Não faço ideia do que poderá ocorrer nas próximas 24 horas. Você pode encontrar o amor da sua vida, ou um final para sua história. Você pode mudar de opinião, como nunca quis admitir, e deixar de ser a pessoa que você é hoje, afinal, este é um risco que todos nós corremos diariamente pelo simples fato de existir. Hoje eu não faço ideia de como você foi daqui alguns anos, ou como você será daqui a alguns anos. Nâo tenho tanta certeza se algum dia você chegará a ler isto, mas espero que continue sabendo que tudo passou, e você continua. Passaram-se os anos, os carros, as casas próprias, os celulares da moda, as redes sociais, as músicas, as mulheres bonitas, a virilidade, as desilusões, as alegrias, as histórias, o passado. Tudo isso se passou, e você sobreviveu. Espero do fundo do coração que você não tenha desistido da sua vida, e lembre de como você sempre foi louco. Agora por favor, o que você me contaria de bom? Aguardo ansiosamente por uma resposta!"

(Por gentileza entregar isto ao Sr. André Picanço no dia 01 de Junho de 2054)