Da Vinte e Miquelângelo

O ano era 2100. Um chegou antes do espetáculo e o outro, como sempre, atrasado. Dois olhares vazios e profundos como um abismo, perdidos no meio da multidão. Camarote 17. Um se acompanhava de sua prima, e outro, de dois amigos. Antes do espetáculo um tirava fotos e mostrava aos amigos, e o outro observava a pintura na cúpula. Que encontro maravilhoso. Um usava óculos redondos e precisava de ajuda para enxergar, e o outro possuía uma visão de águia.
Um casal vindo da Alemanha apareceu no Camarote 18. Logo os amigos começaram a falar Inglês, e o outro rapaz falava da mijada que tinha acabado de dar no bar perto do Teatro para sua prima. O concerto tardou, mas finalmente começava.
As Quatro Estações, de Vivaldi. Magnífico. A perna de um dos três amigos não parava quieta. Os outros dois falavam sobre conquistar o mundo, enquanto um cara tirava foto da sua prima. Os alemães comentavam o quão lindo era o lugar. Era um concerto, não se podia fazer retratos nem anotações, a não ser as mentais.
Um cruzava as pernas e se vestia como um artista. O outro parecia um havaiano brega com mocassim. Um deles era intelectual, e o outro, inteligente. Um deles era o próprio desconhecido, ouvindo o outro ouvir sobre o artista não poder temer o desconhecido. E ambos concordavam.
Os comentários sobre dominar o mundo foram suprimidos pela vontade da música erudita de se fazer ouvida, e não apenas como pano de fundo para planos ambiciosos. As próximas peças eram de compositores locais os quais conhecê-los seriam mera questão de cultura. Quanto mais desconhecido o compositor, mais um deles aplaudia e gritava “BRAVO!!”, enquanto o outro não sabia a qual dos espetáculos assistir — o da orquestra ou o do artista assistindo a orquestra. Sorte a dele que preferiu fechar os olhos e realmente ouvir a música.
“O cego tem o dom de enxergar a música. Que Divino.” Logo um deles teve dificuldades em abrir os olhos, e começou a enxergar um caleidoscópio de nuances musicais. O outro pressionava os óculos contra o rosto para enxergar melhor a performance dos músicos.
Durante o concerto um deles começou a ver a beleza da vida entre duas almas entrelaçadas pelo Destino, que levaram os homens a descobrir novos horizontes além do Atlântico.
Enquanto um deles filosofava sobre como atingir o estrelato ainda em vida, o outro, imóvel e silencioso, pensava em como se manter anônimo pelo resto de sua brilhante existência. Então um fazia notas no celular, enquanto o outro rabiscava várias coisas que ninguém mais entenderia em seu caderno o qual carregava aos quatro cantos do mundo. Um dos artistas buscava respostas no passado, e outro procurava as melhores perguntas para o futuro.
Eram dois jovens de alma velha, prontos a embarcar no mar da vida. Que concerto encantador.
No final da quarta peça o excêntrico artista aguardou todos calarem-se para gritar “VIVE LA FRANCE!!”, e o outro deu um leve sorriso de deboche. O artista virou pra trás e perguntou:
— Você quer que eu afaste para você enxergar melhor?
O careta respondeu:
— Obrigado, mas já estou conseguindo ouvir.
O artista trocou o apoio das pernas e deitou-se no parapeito do camarote para ouvir melhor.
Durante o espetáculo as luzes começavam a piscar, algo de muito grandioso estava acontecendo naquela noite. Pois quando duas estrelas se aproximam tanto assim nem a própria iluminação consegue se conter.
Um começava a entender porque o outro havia sido tão reservado naquela existência.
Ao fim da penúltima peça do concerto, o artista fazia escândalos para se fazer ouvido pelo Teatro, enquanto o careta se escondia atrás da sombra do pilastre, aplaudindo lentalmente.
Enfim chegava a última música. Nesse momento um deles já havia descoberto os segredos mais absurdos da vida e do universo, e o outro finalmente começava a refletir sobre o valor intrínseco da arte para o Mundo, mas nesse momento ainda estava diante de um espelho. Um dos amigos se perdia nas mensagens que tinha de responder no celular, o outro ria da soneca que o careta dava com aquela música sonolenta, a prima tentava entender alguma coisa, o artista cerrava os olhos para ver melhor, e o careta havia se tornado a música ecoando naquele Teatro, ajudando as cordas a vibrarem melhor para o espetáculo se tornar Completo e Uníssono.
Ao final do concerto nenhum dos três amigos aplaudiu, e o careta e sua prima levantaram-se para o aplauso final de um minuto. As luzes se acenderam, então ambos sentaram-se novamente e continuaram a aplaudir sentados. Foi um encontro e tanto, algo completamente Divino. Os dois não trocaram mais do que três frases, e dessa forma foi perfeito, afinal, um encontro dessa grandiosidade poderia gerar um novo Big Bang.
Então na saída um dos amigos comentava sobre a voz de um dos amigos artistas dele, enquanto outro amigo mexia no celular, e o artista sorria ouvindo, e comentou que ele é apenas um espelho, refletindo a luz Solar Divina. O careta gostou do que ouviu, e foi ao banheiro dar outra mijada para consertar a torneira que jorrava água incessantemente. Ele acabou descobrindo como as torneiras que desligam sozinhas desligam sozinhas.
Um deles busca a Grande Resposta no Microcosmos, e o outro lança as perguntas no Macrocosmos.
Daí o amigo do artista que queria conquistar o mundo disse à prima:
— Lindo, né? Parece até CD.
O artista completou:
— CD, não. Melhor que CD, pois é ao vivo.
O careta mexia no celular e sorriu. Ele só ouve música no Spotify.
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